sábado, 2 de outubro de 2010

texto do Michael Hardt


Segue abaixo tradução minha de texto do Michael Hardt sobre a COP 15 (o original está aqui). O texto de Hardt tem como ponto de partida esse acontecimento singular, no entanto possibilita a compreensão de certos conceitos trabalhados por ele e seu parceiro de escrita, Antonio Negri: o conflito entre Império e multidão – o Império, no caso, representado por aqueles com o poder de decisão sobre as questões climáticas, que são afrontados pela multidão que tomou as ruas de Copenhagen. Hardt centra seu texto no conceito de comum: a multidão produz a partir do comum, a produção é feita mediante redes que são comuns e produz mais comum. O comum é a riqueza da multidão, e por isso o capital tenta se apropriar dele.

The Common in Copenhagen

By Michael Hardt

O comum está se tornando rapidamente o terreno primário da luta política na era da globalização. Acabo de regressar de Copenhagen, onde durante as últimas duas semanas, a COP15, a Cúpula do Clima das Nações Unidas, tem sido palco de intensas negociações sobre a gestão do comum.

Principalmente está em jogo como e em que medida nós vamos compartilhar a riqueza comum neste mundo e também como vamos combater as formas destrutivas do comum, que ameaçam as nossas sociedades e as formas de vida na Terra

Quando eu digo que o comum está em jogo no processo de globalização, refiro-me, por um lado à terra, as florestas, o mar, à atmosfera, em suma, algo como o que era tradicionalmente chamado de comum. Por outro lado, o comum também concerne a uma série de resultados da produção e da criatividade humana, tais como idéias, imagens, códigos, saberes, informações e afetos. A questão da mudança climática se situa principalmente no primeiro deles, mas a relação entre essas duas noções do comum foi também um fator importante em Copenhaguen. [...]

Uma vez que concebemos a conferência de Copenhagen como uma luta sobre a gestão do comum, é útil separar esta luta em duas cenas relativamente separados. Uma cena aconteceu dentro das reuniões oficiais no centro de conferências do Bella Center, onde a admissão era estritamente limitada aos representantes do governo, ONGs aprovadas, alguns jornalistas e outros participantes selecionados. Passei a maior parte do meu tempo, no entanto, na segunda cena, fora das reuniões oficiais, entre os movimentos sociais e ativistas, cuja presença representou um importante encontro entre as tradições ativistas focadas no ambientalismo e nos diversos aspectos da globalização.

As reuniões oficiais foram o palco para uma série de intensas negociações sobre a forma e as hierarquias das estruturas emergentes de governança global que Antonio Negri e eu desiganmos como Império. É ainda mais claro hoje que há dez anos, quando começamos a pensar nestes termos, que nenhum Estado-nação, como os Estados Unidos ou a China, pode "ir sozinho" e governar o sistema global. Qualquer tentativa de unilateralismo está fadada ao fracasso. Em vez disso, vimos em Copenhagen um exemplo de como as estruturas emergentes de governança global estão sendo construídas dentro e entre três níveis distintos.

O nivel superior, que recebeu a maior parte da imprensa, é o local dos conflitos e alianças entre os estados-nação. Os Estados Unidos e a China, por vezes, se apresentam como representantes das partes "desenvolvidas" e em "desenvolvimento" do mundo, enquanto as nações européias (por vezes juntas, às vezes separadamente) conquistam uma posição mais matizada.

Algumas das posições mais interessantes, porém, são apresentadas por outros grupos, como o G77, uma ampla coalizão de nações subordinadas representada pelo embaixador sudanês Lumumba Stanislaus Di-Aping. As demandas do G77 e coalizões similares tornam impossível para um pequeno grupo de líderes da elite elaborar qualquer acordo global em particular.

Além disso, um número de nações latino-americanas, [...], bem como uma série de nações Africanas, demandam por reparações da dívida climática cometida pelos países ricos durante seus séculos de dominação industrial. Isso não quer dizer que todas as nações são iguais neste nível (ou, especificamente, no processo da cúpula), mas sim apontar que as hierarquias entre eles constantemente tem que ser negociada..

Um segundo nível do sistema emergente de governança global é o local onde as grandes corporações expressam seu poder. Os líderes corporativos, é claro, não eram oficialmente parte das discussões da ONU em Copenhagen, mas a COP15 foi, entretanto, claramente também um evento corporativo.

Embora grande parte do discurso oficial sobre a mudança climática envolve limitar práticas destrutivas de produção e consumo, "soluções verdes" são concebidas como um enorme campo de oportunidades de negócios. Isto é ilustrado de forma anedótica por uma das campanhas publicitárias mais visível durante a conferência, onde outdoors por toda a cidade tinham o slogan "Vamos fazer de Copenhague, Hopenhagen", em uma campanha patrocinada pela Coca-Cola, SAP e Siemens. Mais importante, porém, é a perspectiva de que a criação de enormes mercados de carbono (um componente provável de qualquer acordo eventual) irá fornecer uma expansão de oportunidades de investimento financeiro e lucro.

Um terceiro nível foi representado em Copenhague por um grupo variado de ONGs, organizações de defesa ambiental, meios de comunicação, e, o mais interessante, as organizações de direitos indígenas. Alguns desses grupos apoiam os esforços dos Estados-nação no primeira nivel e / ou as empresas no segundo, enquanto outros tentam combatê-los.

Em Copenhaguen, então, eu vi como as estruturas emergentes de governança global requerem um processo constante de negociação e colaboração dentro e entre esses três níveis. Este é um processo complexo que envolve uma série de estritas hierarquias internas, assim como a exclusão de uma grande variedade de vozes e populações, mas também abre a possibilidade de recusa e rebeldia de uma variedade de atores. Dentro dessas estruturas de governança global aparecem constantemente forças que podem reorganizar as hierarquias e até, às vezes, criar rupturas no sistema.

Fora da cúpula oficial em Copenhaguen, na verdade, na segunda cena de luta sobre o comum, uma das estratégias mais interessantes dos ativistas e movimentos sociais foi atuar em uma divisão entre os poderes dentro das reuniões. O conceito primário de "Reclaim Power" coordenou ações na quarta-feira, 16 de dezembro, que conectou "walking in" com "walking out”. [...]

Juntos, esses dois grupos, então, organizariam uma "cúpula do povo". A polícia dinamarquesa, através de prisões em massa e outras táticas, deixou claro que os dois lados não se encontravam [...] O significado conceitual do esforço, no entanto, ficou claro para todos os envolvidos, uma vez que "walking in” / “walking out" não só abre o processo decisório, mas também destaca os tipos de alianças que são possíveis dentro e fora das estruturas de governança global, as alianças que têm o potencial de criar alternativas reais

Devemos ter em mente que a base de tais alianças repousa sobre alguns conceitos fundamentais da gestão e da instituição do comum. Por exemplo, os principais mecanismos para enfrentar a mudança climática promovida pelas forças dominantes, como "cap and trade", envolvem transformar o comum em propriedade privada e, especificamente, transformar as emissões de carbono e de direitos de poluição em mercadorias e criar mercados em que podem ser negociado.

Essas estratégias são realmente compatíveis com a ideologia neoliberal e sua convicção de que a privatização sempre leva à eficiência. Os vários grupos de oposição que podem potencialmente formar alianças defendem uma variedade de soluções diferentes, mas todos concordam em sua hostilidade à estratégia neoliberal e a privatização do comum.

Finalmente, o que mais me interessou em Copenhagen foi a evolução dinâmica conceitual que teve lugar entre os diferentes componentes dos movimentos de protesto. Todo mundo estava bem consciente de que esta reunião realizou-se no aniversário de dez anos dos protestos de Seattle da OMC, e parecia natural refletir sobre onde nós estamos. Dentro dos movimentos de protesto, uma linha de divisão ou dinâmica de negociação que parece ser particularmente relevante para mim pode ser expressa em termos das duas formas do comum que eu mencionei anteriormente, o que implica, pelo menos aparentemente, duas diferentes abordagens políticas.

Por um lado, os que se concentram na primeiro forma do comum (incluindo a Terra, as florestas, a água e a atmosfera), tendem a destacar as limitações necessárias de uma política futura porque, na verdade, esta primeira forma do comum é realmente limitado. Um dos cartazes mais inteligente na manifestação de massa na semana passada, por exemplo, declarou: "Não há nenhum planeta B", o que significa que não temos alternativa senão enfrentar os limites dessa terra agora.

Por outro lado, as perspectivas em foco na segunda forma do comum (como idéias, conhecimentos, imagens, códigos, afetos, e assim por diante) concentram-se sobre as formas de acesso aberto que podem realizar o nosso potencial ilimitado para a criatividade e a produção, pois na verdade, essa segunda forma de o comum é ilimitada. O slogan "Nós queremos tudo para todos," um dos favoritos dos movimentos alter-globalização na última década, enfatiza tais possibilidades ilimitadas.

Houve, assim, claramente potencial para o conflito em Copenhagen entre ambientalistas exigindo uma política de limites (argumentando, em essência, "este mundo é ainda possível, talvez") e os activistas alterglobalização defendendo possibilidades ilimitadas (cantando "outro mundo é possível"). Mas tal conflito de fato não aconteceu.

No final, eu suspeito que a dissonância conceitual que reconheço entre os limites e o ilimitado é realmente um falso problema, e que os movimentos vão nos mostrar como essas posições não são contraditórias. Isso me lembra, de fato, de um outro falso problema que parecia carregar os movimentos de protesto, há dez anos, a aparente contradição entre o global e o local

Naquela época, aqueles que se oporam à globalização neoliberal corporativa promovida pelos atores dominantes na OMC foram rapidamente rotulados anti-globalização e, portanto, a favor da manutenção das fronteiras [...]. Levou tempo para os movimentos desenvolverem uma noção substancial de alter-globalização, que revelou que a contradição entre o global e o local era um falso problema. Hoje, meu sentimento é que os movimentos irão desenvolver uma política do comum que tanto reconheça os limites reais da terra e estimule a nossa capacidade ilimitada de criação – construção de mundos ilimitados em nossa terra limitada. Os encontros em Copenhaguen, em qualquer caso, foram um primeiro passo nessa direção.