domingo, 30 de abril de 2017

sacações de sacadas


Saí de um bairro mais familiar e vim morar na Cidade Baixa, a parte mais boemia de Porto Alegre. Por sorte, escolhi um apartamento em andar alto com sacadas amplas que tem como vista um Largo, o Zumbi dos Palmares, local com muitas ações de movimentos sociais. Já nos primeiros dias fiquei impressionado com as atividades no Largo e decidi escrever sobre o que estava vendo. Como o texto rendeu bastante em pouco tempo comecei a escrever um livro sobre a cidade como tema, este. Portanto, esta parte trata principalmente de coisas que vi pelas pelas sacadas, mas há muitas sacações sobre o bairro e suas mudanças nas últimas décadas. Não escolhi a vista como ponto de partida por questões metodológicas, mas sim, por uma questão afetiva.
Esse olhar não deixa de ser pequeno burguês; vejo o mundo do alto da minha torre, meu apartamentinho de classe média, minha posição de doutor. E o mundo está lá embaixo, perigoso como sempre. A rua é o lugar de todos, e há tantos desabrigados aqui na frente. Porém, já vivi esse espaço, o bairro, de forma transloucada: madrugadas e madrugadas, bêbado, narcotizado, com turmas de marginais. Sempre vivi a cidade; por isso, que no meu trabalho há sempre um cheiro de rua, vestígios das ruas.
Uma coisa legal da Cidade Baixa é que os donos dos estabelecimentos, quem trabalha neles e os frequentadores, todos se comunicam, se relacionam de uma forma horizontal. É gente praticamente da mesma idade, com um certo interesse em cultura não massiva; e as garotas sempre são bonitas. Quando estou nos espaços, converso com eles, o dono, ou donos, e o pessoal que trabalha para eles. São todos receptivos e comentam a deterioração do bairro nos últimos tempos. Já era violento na virada do século, depois ficou menos pela modelização, mas nos últimos dois anos é uma das partes mais perigosas da cidade.
As mudanças são mais que visíveis na Rua João Alfredo, a segunda mais importante da Cidade Baixa, que se transformou radicalmente: era uma rua meio opulenta, hoje as casas que abrigam bares estão todas pixadas e fumantes de crack estão sempre por todos os lados. Notei isso quando as cinco da manhã, depois de um tempo sem sair de noite, fui na João Alfredo e parecia uma festa dentro de uma favela. É estranho já que o bairro ganha mais comércio, muitas vezes gourmet, e ao mesmo tempo fica mais marginal.  

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Eu – Cara, achei um apartamento bem bom, ótima localização, bom preço. Mas só fiquei nas fotos, não fui lá.
Um parceiro meu – Por que?
Eu – O ap tem duas sacadas grandes, uma no quarto outra na sala. Só que são abertas, os parapeitos são tipo grades baixas de metal. Oitavo andar.
Meu parceiro – É, deve ser legal chegar de madrugada bêbado e tomar a saideira na sacada...
Eu – Estava pensando exatamente nisso.

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Decidi por fim alugar o apartamento; mas a escolha foi demorada já que tenho medo de altura. Porém, foi exatamente a vista que me fez locar o imóvel. Talvez seja uma das mais interessantes de Porto Alegre: oitavo andar, de frente para o Largo Zumbi do Palmares, local que tem atividades constantes.  Não estava interessado em morar na Cidade Baixa; não fazia questão; muito barulho, muita festa. Não queria acordar de madrugada com vontade de sair. Mas agora estou aqui desde sexta; hoje é segunda. Estou aqui escrevendo, faz sol, é de manhã, e quando paro de escrever, olho a vista. Montei a sala de tal forma que posso vê-la, a vista, mesmo quando estou escrevendo e pesquisando no computador.   
Arrumei tudo na sexta de noite, estou bem instalado, porém sem sinal de internet. Meu plano de dados está consumindo muito. Não tenho televisão, faz anos. Por isso, fiquei muito tempo entretido com o que se vê das sacadas. No sábado, fiquei intrigado com um rapaz de pé, de frente a uma janela, uns 300 metros à minha frente, no décimo andar de um edifício, que provavelmente fica na Rua José do Patrocínio. Ele estava de pé e as vezes desaparecia. Como estava distante, não conseguia ver direito. Mas entendi a cena: ele estava, não de pé, mas de joelhos em uma cama transando.  
Daqui vejo vários locais que já frequentei. Descobri no sábado que dá para ver um prédio que morei entre 2005 e 2006. Depois, notei a parte de cima de outro prédio no qual fiquei um bom tempo em 2013, já que ali morava uma namorada na época. Também vejo o edifício de um amigo meu. Aqui na frente tem mais espaços importantes para mim: uma lancheira, o Cavanhas, que era ponto de encontro de minha turma na adolescência; o local que abrigava uma casa noturna, o Dr Jekyll; o bar Ossip, que frequento desde os 20 anos; um teatro no qual assisti inúmeras peças desde a adolescência. Mas o mais importante é o Largo Zumbi. No Largo, participei de manifestações e encontros de movimentos em rede e quando era mais novo ali praticava skate.   

sábado, 29 de abril de 2017

crônicas: poa, na virada do século


As páginas posteriores são sobre cacos de memória, referidos a Porto Alegre na virada do século. Tratam da indiscernibilidade entre dia e noite, sonho e vigília, lucidez e alucinação, realidade e ficção. São coisas que vi, fiz, ouvi, outras que possivelmente são buracos negros, invenções, truques da memória. Como são situações que não tenho certeza se aconteceram, escrever sobre elas é literatura ou autobiografia? Por isso, no caso, o registro artístico é mais importante do que o trabalho cientifico, a arte expõe melhor a loucura e a narcose do que as ciências.  

De madrugada, acabei de sair de um bar, pedi um ácido prumas pessoas, desconhecidas, não sei se me deram, se eu tomei. Estou descendo de carro a rua do Jardim Botânico, os vidros abertos, som alto, alta velocidade, começo a respirar fundo, fundo, mais fundo, de repente cada inspiração é como seu eu estivesse aspirando um gás que sobe direto pro meu cérebro e me dá uma sensação de prazer. A rua fica flat, paro em um sinal, a alucinação acaba de súbito. Penso no que aconteceu: eu tomei o ácido? A turma me deu alguma droga, uma droga nova? Nunca havia sentido isso. Me envenenaram? No chão da parte da frente do carro, várias caixas de vários tipos de medicamentos estupefacientes.  
Estou voltando de carro de Canoas, cidade ao lado de Porto Alegre; tinha virado a noite. Me sinto bem; não sei o que tinha tomado, não que eu não lembre, mas eu não sei, e não sabia. Devia ter tomado muita coisa. Estou na estrada e tenho um acesso de risos. Não consigo parar de rir. Me sinto louco, mas não me importo.
A gangue na frente da NEO de manhã; a luz do dia que quase cega; me sinto meio oprimido pela luz. Poucos carros na avenida, um pouco frio. Um carro passa em alta velocidade e um dos caras do grupo golpeia o carro e quebra o espelho retrovisor. Isso realmente aconteceu? Poderia acontecer algo do tipo? Um carro na rua em alta velocidade pode ser golpeado por alguém que tá a pé? E mais, esse alguém nem se lesionou.
Tomei ácido e codeína no Garagem Hermética. A codeína tinha batido, mesmo que eu precisasse de doses cavalares pra fazer efeito já que eu tomava feito água. O ácido não tava batendo. Chego em casa de manhã nada do ácido ainda, mas sentia um vento gostoso passando sobre mim, um frio agradável. De repente, paro na frente do espelho e me olho. Olho fixamente e quase vejo os ventos. E daí, ouço uma voz: “se despeça de mim”, ela diz. Ouço isso apenas quando olho o espelho. Na semana seguinte uma amiga de infância se mata com um tiro.
Saio de um puteiro na Cidade Baixa de manhã, estou na rua. Devo ter passado a noite junto com as prostitutas. Me direciono pra casa, que ficava na quadra abaixo. Ouço uma prostituta gritar meu nome, não dou bola e continuo caminhando.  Tudo estranho; a estranheza de se encarar o dia depois de ter estado a noite toda em um lugar fechado e escuro. O que se passou? Provavelmente isso aconteceu inúmeras vezes, mas eu não tenho memórias claras.  
Nova York, década de 70, Iggy Pop louco de muita coisa como sempre. Ele passa por um pessoal, diz “oi”, mas não vê uma escada. Ele cai, rola pra baixo. Todo mundo diz: ele morreu. Mas ele se levanta e continua caminhando como se nada tivesse acontecido. Quando li a história pensei: acho que isso aconteceu comigo naquela casa noturna no fim dos 90.  
É de manhã, passo na área administrativa da cidade depois de uma longa noite. Passo um sinal vermelho, a polícia me para, e diz: “cara, é a segunda vez que você faz isso na semana; eu não vou te passar no bafômetro hoje, mas na próxima eu te prendo”.   
Eu tava vidrado nessa mina. A gente se via sempre na NEO e ela virava a cara pra mim. Num domingo na Oswaldo Aranha ela cede e a gente vai pro meu ap na Cidade Baixa. É de noite, madrugada, ela se apoia na janela, nua. Nunca havia visto uma mulher tão bela, gostosa. A gente transa na janela mesmo, olhando pra rua. Depois acho que já é dia, a gente tá na sala, eu estou nu e ela tá com aquele vestido negro mostrando o corpo. Horas mais tarde estou sozinho em casa e vejo que ela tinha escrito em meu diário: “vai a merda, eu te amo”. Na noite posterior a tudo isso, a garota que eu gostava, uma ninfeta dez anos mais nova, permite que eu a beije, não na boca, como rolou no Parque da Redenção horas antes, mas em seus peitos, em seu ventre, em sua vagina. Daí, dias depois, estou fumando um na janela e vejo que ela – a ninfeta – lê meu diário; ela lê aquilo que a outra mina tinha escrito: “vai a merda, eu te amo”. Ela, a ninfeta, foi embora e nunca mais a vi.  
Caminho pela rua, parece que estou caminhando sempre, sem parar, dia e noite. Encontro um amigo e a gente vai tomar uma ceva num bar perto da Redenção. Antes eu tava na Redenção beijando duas EMOS. Sempre encontrava elas e não sei o que mais rolava, não lembro. Eu e o amigo a gente tava bebendo uma cerveja e comentei com ele: acho que eu tava de tarde no centro, perto da Matriz, tinha poucas pessoas na rua, vi uma mina. A gente, eu e a mina se olhou, eu beijei ela, assim do nada. Nunca tinha visto ela e ela gostou. Sim, isso aconteceu, mas eu não me lembro.
Eu, minha amante e minha namorada, a gente foi pro acampamento do Fórum Social Mundial. Isso em 2001 ou 2003 ou 2002. Minha namorada ficou conversando com minha segunda amante e eu fiquei com a minha primeira já que ela tinha várias caixas de Valium e Rohypnol. Então ela foi me dando comprimidos. Eu pedia, ela me dava. Isso era de noite quando o pessoal dançava, bebia e tocava instrumentos rústicos entre fogueiras. De manhã a gente chega em casa, não sei como. Mas lembro bem de tomar tudo que ela tinha em mãos, mas não lembro da overdose, nem quando me levaram pro ambulatório. E tudo isso pode ter sido um sonho.
É uma noite escura, estou na Barros Cassal. Eu encontro aquela mina com sotaque estranho que era atriz de filmes de terror pornô. Em outra noite eu pedi pra fotografar os peitos dela, enquanto o diretor dela tava cheirando cocaína em um grande espelho, isso no Garagem Hermética. Daí eu tava com a mina e a gente deu umas voltas pela cidade de carro. Acho que tava junto aquele cara, o Paulista. Eu digo pra ela que não posso comprar codeína, a única farmácia que tinha não vendia mais pra mim. Ela vai até a farmácia com as receitas e consegue comprar. Daí o Paulista, enquanto ela comprava, disse que iria me dar pelo menos mil reais se a gente roubasse a farmácia. Eu mudo de assunto. A gente tava num posto perto na Farrapos e o Paulista desaparece num carro com um psicopata cheirador. Eu fico com ela como queria. A gente tira umas fotos. Eu peço um beijo e ela me chama de infantil. Deixo ela em algum lugar muito longe, talvez na Avenida Assis Brasil.
O dia nasce e estou caminhando em direção da Farrapos pra ir num puteiro; tinha perdido o carro? 
Eu e minha namorada a gente decide conversar sobre a relação dentro do banheiro de um bar na Lima e Silva. A gente entra e começa a conversar. Ao mesmo tempo uma das atendentes do bar fica batendo na porta dizendo pra gente sair. A gente não sai, ficou lá uma meia hora. Nossa turma de amigos tava lá fora fazendo não sei o que, mas nos esperando. Dez anos antes eu e meus amigos a gente entra em um banheiro minúsculo pra cheirar pó pela primeira vez. A porta começa a bater, e a gente ouve berros pedindo pra que a gente saísse. Isso era meio óbvio já que era o único banheiro masculino de um bar que enchia de caras que bebiam cerveja. Mas lá no bar da Lima e Silva eu e minha namorada a gente ouve uma voz alta e masculina dizendo: é a polícia, se não abrirem a porta, vamos derrubar. A gente abriu e saiu sem problemas; apenas nunca mais deixaram a gente entrar no bar. Mas o mais interessante é que a polícia bate as sete horas da manhã na porta do meu ap na José do Patrocínio. Pensei: me ralei. Eu abro a porta e o policial diz: mas você de novo! Era o policial que me tirou do banheiro em que eu tava com minha namorada. Nesse dia a coisa foi simples, eu só tinha estacionado o carro em frente de um bar o que tava impedindo que o bar fosse aberto. Não sei o quanto de verídico é essa história, já que eu não confio em mim.
Eu saio de manhã da NEO. Uma garota debocha de seu amigo gay. Ela lhe dá um tapa no rosto. Eu fico puto já que ela tava sendo sádica com alguém mais fraco. Eu lhe digo: bate em mim. Ela abaixa a cabeça. Eu lhe digo: venha com minha turma não tem ninguém na rua vocês podem ser assaltados. Ela vem atrás de mim e me beija na boca.
Eu peço cocaína pra alguém, é um segurança e ele me põe pra fora de algum lugar que eu não me lembro.
Eu beijo uma garota dentro de um bar enquanto acontece uma chuva de garrafas, uma briga de gangue.
Eu acordo na rua, e a minha futura namorada aparece e me compra um XIS pra eu comer.
Ela me chupa em seu apartamento depois de anos tentando me comer. Meses depois eu vou na casa dela de madrugada, mas ela mesmo assim me acolhe. Anos antes a gente caminhava de madrugada da Osvaldo até a casa dela na Independência. Ela queria ficar comigo, eu não. Anos depois eu durmo na casa dela e a gente transa. Ela fica brava comigo já que derramei vinho no sofá. Anos depois eu digo a ele que a amo, e ela diz que sabe que é mentira. Não posso falar sobre ela, já que não sei se ela realmente existe ou existiu.
Eu entro em um banheiro de um bar – não sei qual – com duas garotas. O banheiro é o feminino, talvez estivessem lá outras garotas. Eu e as garotas a gente se beija. Não sei como era o rosto delas. Parece que elas tavam tão seguras, livres, quanto eu. A gente não tava nem aí com seguranças, com as pessoas em volta. Sinto que isso aconteceu não uma vez, mas inúmeras vezes, em inúmeros lugares em inúmeras épocas.  
Em uma casa noturna eu começo a caminhar e beijar qualquer garota que passa pela frente. Eu beijo todas, umas dez, talvez tenha beijado rapazes, não sei. Lembro do afeto envolvido, algo que me impulsionou a isso. Depois eu tava transando com uma garota dentro da casa, junto a uma das janelas, de frente pra Redenção, só que daí um dos seguranças saca o que estou fazendo e sou expulso do lugar.  
      Estou caminhando com um amigo e digo: Lucia é uma garota bonita, não? Ele diz: você ficou com ela noite passada. Eu pergunto prum outro amigo: eu tentei agarrar a Maria noite passada? Ele diz: você não devia ter feito isso.
Eu saio de um táxi na frente da casa noturna e vejo uma mina; ela tava conversando com um cara, acho. Não dou atenção pro cara e falo pra ela: vamos pro meu ap? A gente pega o mesmo táxi, vai pra minha casa e transa. Depois disso ela foi embora. Não lembro do seu rosto.  


um delírio, um sonho, um estado de narcose


Exemplifico a percepção molecular, a cartografia do molecular, a partir de três momentos distintos: uma cena que aconteceu no cotidiano, um sonho e um estado de narcose. Esses momentos mostram áreas de indiscernibilidade entre sujeitos, colocam em jogo a racionalidade e o bom senso, afirmam mundos diferentes, dos sonhos, dos delírios, das drogas, mostram uma relação com a vida de estranheza, mas também de alegria, a possibilidade de outros mundos, não só possíveis, mas atuais, mesmo que seja a atualização a partir do delírio. A percepção molecular permite o contato com o caos, e o caos é o mundo, já a percepção normatizada, fotografa, congela, impede os fluxos.      

1. Estava na praia do rio Guaíba em Porto Alegre. Estava fumando um cigarro. Vi um rapaz entrar no rio com sua prancha de Wind Surf. Ele entrou sozinho. Começou a surfar, fazer manobras. Em determinado momento caiu na água. A partir daí ele lutou durante dez minutos para se levantar. Fiquei olhando preocupado já que ele estava sozinho. Se levantou e voltou para a areia. Senti vontade de ir perguntar a ele se estava tudo bem, queria saber como estava se sentindo. Quando fui dar o primeiro passo em direção a ele, me senti estranho, uma sensação estranha; fiquei com medo, fui para o meu carro. Quando entrei no carro, reconheci a sensação: era a mesma que sentia após ficar preso em buracos na água da praia. Para sair de um buraco se exige um grande esforço e por ser na água isso gera um tipo específico de cansaço. Penso que senti o que o surfista estava sentindo já que ele lutou na água por dez minutos para ficar de pé. Aconteceu algo entre nós, compartilhamos o mesmo afeto, ou seja, uma linha de fuga da individuação dos nossos corpos, os corpos compartimentados e isolados. Isso é uma molecularização da percepção: sentir o sentimento do outro, que não é mais outro, mas uma linha de um agenciamento no qual eu era também uma linha. 
2. Um sonho, parecido com a cena acima, no que se refere a indiscernibilidade entre sujeitos. Me perece ser um sonho recorrente, desde a adolescência. Caio de um andar baixo, mas de nuca e assim quebro o pescoço. Na caída, fico com medo, que aumenta até o contato com o solo. No contato, quando quebro o pescoço, ao mesmo tempo, penso: ok, morri. Morto, ainda me percebo; sei que estou morto e me percebo morto – isso dura uns segundos, e nesses segundos conjuntamente, algo muito estranho acontece: vejo uma garota caminhando em um espaço tempo que não reconheço; ela caminha, está feliz, não muito, mas está; uma felicidade de adolescente, quando se sente feliz sem grandes motivos. Só que entendo que eu sou aquela garota; ainda me reconheço como aquele que morreu, mas sei que agora, depois daquela morte, sou essa garota. Mais uns segundos, a lembrança da vida daquele que morreu se apaga e a garota segue a vida dela – e parece que algo meu, o que morreu, ficou com ela. É difícil de narrar esse sonho, pois ele trata de uma despersonalização, da inexistência de barreiras entre sujeitos, é um tipo de esquizofrenização. Obviamente, não faço uma leitura extra real, de vida após a morte, de reencarnação; mas sim, para mim, fica óbvio no sonho que a vida não se resume a vida pessoal: os fluxos passam entre sujeitos, entre sujeitos acontece muita coisa; há o caos, mas o enxergamos a partir de lentes embaçadas. O sonho é um delírio, e posso falar muito bem de delírios já que sou um drogado desde os 13 anos de idade. Aliás, mesmo não me drogando, consigo perceber meu devir drogado, por isso, trabalho com a percepção molecular e gosto de pensar e lembrar de meus sonhos. Esse delírio permite uma narrativa da morte interessante e acolhedora, tranquila e não dolorosa. A vida continua em sua potência ou tristeza. Fico feliz com a felicidade da garota que também sou eu, e nós somos moléculas entre o núcleo da terra e o cosmos.
3. Uma viagem de inalante recorrente: a viagem é mais difícil de ser narrada, eu sinto que a compreendo quase completamente, mas é difícil de narrar o que sinto, já que é um delírio, os signos do delírio são diferentes aos normatizados. Por isso que em momentos do livro eu tenho que usar literatura; preciso de uma linguagem inexata para expor exatamente as descodificações. Eu cheiro e praticamente apago, meu corpo deve estar parado, não tenho consciência do meu corpo, mas estou sonhando (viajando). A viagem: percebo um mundo, um mundo como o nosso, idêntico, mas eu não sou eu, eu sou um outro. Tenho uma outra vida, sou outra pessoa, estou feliz, eu me compreendo como a outra pessoa da mesma forma que todos têm uma compreensão de si, de seu corpo, história, etc.  Essa outra vida é boa, mas não muito diferente da minha em estado não onírico. Em certo momento, pelo enfraquecimento da dose de inalante, eu retorno a compreensão de minha vida em vigília, volto a ser “Diego este que fala”. Mas há um ponto, um momento na viagem, que me faz compreender as duas vidas ao mesmo tempo; e sinto um desejo de manter a vida onírica. Quando sou empurrado para a vigília sinto nostalgia da outra vida. Após passar por essa viagem inúmeras vezes, raramente, surge uma dúvida: se essa vida que penso ser minha em um mundo concreto, neste mundo, se ela não é uma viagem de inalante. Será que agora estou viajando e posso retornar em breve para outra vida? Como me sinto e me compreendo agora não é diferente de como me sentia e me compreendia nas viagens de inalante.    

sexta-feira, 28 de abril de 2017

exercícios de escrita-idiota


A ciganada veio pra cidade e em uma hora se foi. Eu tô lá faz tempo, tô lá, não aqui. Sabia que a maionese que se vende depois da madrugada dá barato? Não, ela que é barata, a mina que cuida a porta do banheiro. Ela que se cuide, disseram. Mas ela já tinha entrado pela entrada também; é, meio que foi demitida. A circulação para, parou, e ele tá mesmo assim na esquina. Qual esquina? Aquela ali perto da Praça Mario Peixoto.  A gente fingia que fingia, e sabia que não tava nem mais aí. Já disse: tô lá, não aí. Me compra um charuto, me enrola um charuto. Veadinhos fumam incenso. Bosta de vaca, chove, e daí a gente toma um ar puro. Semana que vem furúnculo na bunda. Que bom que o cú fica escondido do sol. Se bem que o Carinha, aquele mano, tem palitos de fósforos que acendem no cú. Um cú solitário é algo triste; um cú comunitário, bem, a gente canta parabéns pra você. Levei o Sandrinho na banda das mangueiras longas. Ele riu, mas riu tanto que molhou o banco traseiro. É, traseiro. Me explica uma coisa. Não, na real, dá uma banda. Tem muita gente por perto e eu fico tímido pra limpar os dentes dela. A gente sabia tanto que só sobrava espaço pra esquecer. Se avião passa aqui na frente, a gente ora por Deus. Vivi muitos anos entre aquelas pessoas anos 90. Vivi tanto com eles que passei a acreditar que nem tinha ido pra Woodstock. Ele falava tão bonito que a gente cortou um pedaço da língua dele. Agora ele fala como a gente. Banho de chuva na praia é tipo acordar as três horas da tarde no meio do mês de março. Se tudo fosse fácil, tudo não seria difícil. Entendeu filho, meu filho, meu filho da puta? Ela nos corneava; a gente, sabe? Eu e o Mário e o Maninho e o Cabeça e o Ronaldo e o cara que tava sempre na esquina dizendo: cara, que se foda-se. Os semáforos deram certo, eles nunca piscam. Os tiozinhos ganharam aquele concurso de comer barata. É, escovar os dentes ficou mais difícil. Ela pensa que tá em que lugar? Ela pensa que tá “no morro, três da manhã, acabou o pó”? Ficar de quatro é só ficar de quatro. Eu não fico nem de pé. Deito, sim; eu deito e rolo. O jogador perdeu a mão pruma máquina que só funcionava de manhã. Ele nunca acordou antes do meio dia. Me explique; não, fica na tua. Não é não e não é não, simples, não? O melhor orgasmo é aquele do peito; mas síndrome do pânico é tensão mesmo. A diferença é que os caras tão sempre dando uma de gostoso, e eu não gozo nunca, não sou da geração goza-cola. Só que a Marinara, aquela gata safada que cobra cinquenta por duas punhetinhas, ela só goza se o cara leva ela até o hotel com mais de uma estrela. Ele começou a fumar crack para ver se dava uma acalmada na loucura. Funcionou. Me paga um charuto? Faz que nem o Mané, cospe nas costas que ele não comeu. Sim, funciona, é só tirar da tomada, colocar os pés na bacia e daí já foi. Já foi tarde. E eu que nem cheguei e nem vou. Tô mais em lugar nenhum do que aqui. Não me ligue, não estou aqui. Não me acorde, não durmo mesmo faz dez dias. Me compra uma revista do Batman. Coloquei o sofá no lugar; é eu coloquei ele no lugar dele.
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Conhece o Sacana? É, o Doutor Só Cana. Ele queria dar uma averiguada na próstata do Tio Hermes. Só que ela, a Dona Próstata, já tava avariada faz tempo. Não sei, mas me parece que sessão da tarde nos dias de hoje rola de noite; e o que rolava de noite, rola qualquer hora. Sim, é isso, muito bem, sempre, já que as cascas de dentro do nariz sempre vêm com meio quilo de sangue. Por favor, meu amor, me chame de meu amor, por favor. Coloque vaselina no cabelo e curre com a cabeça uma mina-rinoceronte. Prainha da Macumba sempre foi cara pra dar uma banda nas férias. Daí a gente faz a macumba ali naquela rua naquele bairro na Zona Leste. Eu não vou estar aqui, agora, e daí, não me ligue, não ligue pra mim, ninguém se liga, tô ligado e deixa assim. Na real: que se foda; melhor, vou ser honesto: que se foda; melhor: eu te fodo quando você quiser. Colocar no forno só se for no domingo. As calcinhas foram usadas, sinto o cheiro de longe. Meu Deus do Céu Azul. Mina, se você vai no banheiro, não fale com o Mário. A Dona Gatinha se fodeu, ganhou dez perebas naquele lugar que ela nunca viu e nem sabe. Saio na noite pra pegar umas dores de corno. Não saio na noite, já que ela tá aqui. Amanhã quem ganha os cornos são as vizinhas lésbicas do andar de cima. Ok, comi uma puta de rua que fumava crack. Ainda quero fazer aquele curso de cerâmica. A cidade voltou a ser a cidade. Não sei se existem helicópteros. Quebrei o tornozelo e ela ainda quer que eu a carregue pelas costas.  Tem uma bela praia aqui no País das Loucurinhas. Vou soltar um barro, nem mais volto. Frango assado se vende por dez pilas, galinhas são mais caras, mas ainda são baratas. Coloquei o cú ao lado da caixa de som, meu cú está em estéreo, me cú está muito dançante. Você ainda me ama, Dona Megera? Uma noite no andar superior, por favor! Realizo sonhos por muito, muito mesmo, muito pouco.
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Se me encontrar não me avise. Ontem é um bom dia pra você me beijar. Sim, faço isso logo, daqui a uns dez anos. As hemorroidas não importavam, mas aquela espinha entre os dedos.... Que bom que não chupo dedos. Deve ser trauma daquela época em que os bicos tinham gosto de geleia de morango. A tua cara estava muito bonita; não gosto de caras bonitos; é, dei a garrafada por uma questão estética. Pinto mole de cachorro é mais duro que pinto duro de barata. Quando eu durmo do teu lado eu me sinto tão: “então, deixa assim”. Não entendo, quando tomo coca-cola sinto vontade de dar uma banda; quando tomo todas, a banda já aconteceu. Eles viviam naquela época em que a palavra caralho só tinha dois sentidos: pra cima e pra baixo. Hoje em dia, o caralho não tem mais sentido; caralho desorientado. É um saco, dou a banda da manhã naquela loja de conveniência e o General tá com os dois filhos. Sabe aqueles dois? A Loirinha Gostosa Quando Crescer e o Seu Malinha. Choveu, molhou e não gozou – gozar é pros fracos. A Dona Bocetinha Magra transava com guardadores de carros naqueles dias que eu tomava Valium. Não sei, sabe? Os caras fecham as lojas do bairro, mas o bairro tá sempre aberto. A sacana que vende fluoxetina é uma sacana. Ela vende por um preço baixo, mas a gente tem que aturar o bafo quente dela. Sabe o bafo dela? Me fode, mas não me beija. Se me beija, me fodeu e tamos certos. Atrás de mim, não, meu bem. Diga meu bem, meu bem. Me vende uma pedra de crack, Tia Peruana. Ele dava play nas máquinas de Pinbal da loja do Seu Otário. Mas agora não dá mais pra rolar os play, seu boy. Não sei se a gente foi pro mato e se eu tinha comprado duas garrafas de vinho, três caixas de bolas, mas eu sei muito bem o que eu não sei. Tá achando que é festa? Com dois cús se faz uma casa. Dois pintos e uma montanha venderam milhões. Como ainda pão de manhã, já que você tá lavando a louça de dois dias atrás. A gente dá um jeito. Se ela pulou da janela.... deixa ela. Dona Tia Velha dá um tempo, quem é teu alfaiate? Meu gato mija na cama, mas não na minha. A gangue das piranhas sempre vende aquelas merdas que faz a galera ficar constipada. Não estou mais fazendo academia, mas vomitei na perna do Otário, melhor, Senhor Otário, como ele gosta de ser chamado. Se tem festa na madruga eu tento não descer.... o meu pau, que nunca fica descido. Não sei, já disse. A gordinha ficava puta quando eu comia todas, mesmo ela comendo todos e todas e mais um pouco. A vida é louca. Aqui no prédio tem mais lesmas e centopeias que na parte alta da cidade.  
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Com quanto cornos se faz uma canoa? Hambúrguer barato é caro nas segundas. Ceva quente rola em qualquer lugar. Bocetinha queimada na areia. Eu fumo quando eu quiser, no lugar que eu quiser. Toda a noite eu pego carro e vou até a fronteira. Daí entro na casa dela em São Francisco do Caralho e como um banquete divino. Ela continua confiando em mim. Eu sou esperto, não confio em mim de jeito nenhum. Eu estou no lugar que devo estar, ao lado das hemorroidas de qualquer um. Gozei e não gostei. É caro gostar daquilo que elas gostam. Diferente seria se eu fosse uma lésbica, e se eu fosse, me comia bem feliz. Ela abriu as pernas, eu passei por baixo. Putinha, entra no carro, mas não seja doce demais. Namoradinha que não beija é minha namoradinha de início de mês. Meteu no lugar que não era para meter. Geladeira, paralelepípedo, te amo, e não mais. Dona Coisa, eu te respeito, mas não use tanta naftalina entre as pernas. Eu não sou um punk sujo. A gente ainda come frango, mas dizendo que brócolis é coisa de gente feliz. O tio prepara o cachorro quente na esquina. Sim, ou não, ou talvez: escolha! A feira orgânica tá sendo montada e a cadela da Marta foi montaria de todos. Dei uma volta e não voltei. Me diz uma coisa; deixa assim.  
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Casa cheia de ratos com barras de chocolate entre os pelos. Duas ruas, uma atrás da outra. 120 por hora a toda hora e nem dormi. A Dona Coisa se foi, mas era o Mário que tinha razão. José tá mijando na frente da praça. Pior foi quando o Marco cuspiu no nosso prato e a gente teve ainda que pagar uns dez cada. Era tanta loucura que só podia ser realidade, e sempre penso nisso quando esqueço disso. Desatei o nó, fiquei meio assim com a série de TV, na real, eu queria cair fora. Trinta anos depois tudo de novo. A galera comprou aqueles alfinetes, daí a gente foi preso por magia negra. Luizão deu uma de mamão. Acordar quando se está acordado dói os dedos. Daí, daí, daí a Daniela disse que a Ridícula tava saindo com o Mário. Meio copo disso, meio daquilo, mais aquilo, daí a gente compra uma casa num bairro classe média baixa. Não quero mais saber daquela noite que nunca acaba, e eu não quero acabar. Ela se acabou comigo. Tinha tanta dor de cabeça que morfina dava dor de cabeça. Cabeças de alfinete, me rebite! Santinha, vem aqui! A gente fica velho quando a gente fica velho. Eu queria menos. Não sei o que coloco por cima. Uma cabeça mais uma marmelada dá uma cabeçada. Cabeção nem tomava já que era como nós antes do verão começar. Já que está aqui me dê duas pegadas. O nome dela era aquele nome que nem mais fabricam. Buraquinhos não nasceram na mesma época dos dedinhos. Se você quer comer isso por favor lave as frases. Os dedos estavam sendo queimados nos cascos daquelas éguas chamadas de “qualquer coisa rola”. Afinou-me. Duas abelhinhas entraram no vaso e cuzinhos docinhos disseram: quero mais. Sim, eu topo quando ela quer comprar batatinhas com aquele lance gosmento em cima; mesmo que comida seja muito século passado. Queima, queima, queima, e lava as flanelas. Com quantas bucetinhas se faz uma canoa? A gordinha tava na parte de dentro daquele hemisfério. Daí aquele tio, o Opala Tunado, disse que as chevetteiras voltaram. É meio dia, cozinha uma meia calça pra dois. Comprou todas as terças e foi demais. É ele sempre faz isso. Daí era cedo para se chegar tarde. Sim, ela era demais. Me dá menos. Me liga, tipo call center depois da meia noite. Me passa a dose de natal, quero vomitar no quarto ao lado. Ao lado, sabe? Tipo naquele lugar que dói para a dona Ridícula. Mastodonte tomou aqueles lances laranjas que o Mário receitou. Tomou e daí dormiu. No outro dia, foi dar “oi” pro senhor Bidê, mas mijou de ponta cabeça. Seis horas mais tarde queria ser um peixe boi. Se eu quebro as regras... é, o jogo acabou sem um 21. A dancinha dela era legal. Namorei a Marta por um mês. No outro mês a gente sacou que ela tava grávida. Daí eu convidei as Três Putinhas pra ficarem aqui em casa. Disse: Putinhas, de aluguel, pode ser duas cervejas de cada por manhã. Daí elas vieram morar aqui. Acabou o lance quando as cevas viraram vinho de macumba. Ele era meu amigo, só que daí entrou naquelas de ser minha amiga. Sim, ela veio, amei, mas pedi pra cair fora, tipo: no meu edredom só a Marta vomita. Vamos dar aquela banda junto do rio? Vem cá, você me deve. Vovó fez muitos docinhos pra festa. Bidês de cores claras ou gravatas de fimoses? Não vejo mais nada daqui, tá tudo mais que duplicado; tipo, dobra a dose, seu Mário. Que Mário? O dono da lojinha. Nem mais queria, só que na real se fez que não queria, e por isso, mais que quero.
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Furei os olhos e ela mijou atrás da árvore. Ela, lembra dela? Aquela mina tipo coisinha dura, chata, sanguinária. Sim, ela, a que metia o Pablo por trás toda noite; a que lavava os coelhos e depois comia batatinhas chinesas. Lendo a obra completa de Mário, o senhor Soares, descobri a real motivação dos furúnculos nas bochechas dela.  Sempre a Aninha vem aqui e a gente começa a abrir as portas. As cevas quentes foram feitas para serem amaldiçoadas. Malditas cevas de Cristo do Inferno. Barrinhos? Era sobre isso que gente tava falando ontem?  Os carros aqui da frente estão com aquelas varizes que eu como sem pagar. Me dói a maionese. E daí tava todo mundo dançando, e veio o Barrinha de Chocolate e deu aquela dor na alma de todo mundo. Tipo, vinte anos depois o que tinha rolado tá escrito no jornal que a gente nem lê e que se foda. As cachaças fugiram das ressacas e as calçadas doem o cú. Não rola mais jantares de fim de ano, tipo aqueles que a gente nunca foi. Os discos mais audíveis estavam na casa do Getúlio. Pau no cú daquele que finge que ouve. Sempre usei tuas cuecas mesmo que as nossas bolas joguem pingue pongue em clubes diferentes. Se o banheiro agora tá vazio, se ninguém peidou ali antes, a gente pode até pegar as camisetas e lamber elas por dentro. Removedor de tinta é aquele lance que a gente ama mais que a própria mãe, a do Mário. Que Mário? O dono do armarinho dos Soares; Mario Soares.