sábado, 16 de setembro de 2017

Eu me desprezo

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Eu me desprezo, não me suporto, tenho vergonha de mim mesmo. Minha empregada doméstica recebe por hora mais do que um professor, e eu acho que isso é sintoma da decadência social. Como alguém baixo, de segunda classe ganha mais do que um professor? Um professor tem que ganhar mais do que um limpador de rua, mesmo que o trabalho do limpador seja muito mais duro. Trabalho intelectual tem que ser valorizado, mais, sim, do que qualquer outro. Eu sou classe média, minha família pode pagar meus estudos, mas entrei na universidade pública. Sou rico e ganho financiamento de agências do Estado, e o Estado é sustentado pelo trabalho duro dos pobres. Eu não preciso do dinheiro, mas quanto mais, melhor. Que se foda o cara que tá na rua, eu quero fazer minha vida, isso que importa. Sim, eu luto pelos pobres em meu discurso, mas só nele. Tenho pena deles, sou paternalista, quero o bem deles desde que eu continue tendo cada vez mais dinheiro. Sou um gourmet, gosto de comidas especiais em restaurantes hipsters. O que eu pago por uma refeição poderia alimentar muitos que estão nos semáforos pedindo esmolas – passei por eles agora. Eles que se fodam. Troco de carro a cada três anos já que não gosto de carros velhos. Admiro pessoas que têm carros que custam centenas de milhares, e eu queria ter um carro assim; e esse dinheiro – o custo de um carrão de playboy – poderia ajudar quantas pessoas? Tenho uma casa grande, bem equipada que abriga minha família, enquanto muitas famílias, do mesmo tamanho, vivem em tendas na rua. Se fosse estipulado que cada pessoa poderia ter apenas 30 metros quadrados para si, que um casal poderia ter quarenta metros e dez a mais para cada filho, se isso acontecesse, provavelmente, todos os brasileiros teriam moradia digna. Mas eu não quero isso, quero mais e mais, e mesmo se eu nunca tiver, quero que as coisas continuem assim, já que amo os ricos, a riqueza; gozo ao pensar na riqueza. [......] Como carne; que se fodam os animais, mas ainda acho absurdo zoofilia. Sim, como carne já que é o alimento mais caro; assim mostro para todos que tenho dinheiro. Tiro fotos em restaurantes caros, por isso.  
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Preciso de mulheres, de gays, de negros, de pobres, para que eu esteja sempre acima; sim, sou um macho, branco, classe média. Eu fui castrado, então vou castrar; quero minha posição; que continue existindo o poder de uns sobre muitos. Sou egocêntrico; e sou tão egocêntrico que nem noto isso, já que meu discurso diz o tempo todo: sou um cristão humilde. Para mim, só interessa a macro política, sou um cara sério. Faço putaria apenas na vida privada; separo o privado do público. Quem fala o que eu não entendo está louco; quem discorda de mim é fascista. Eu silencio quem me contradiz. Sou um consumista, mas me auto qualifico como um lutador pelos direitos dos que não têm renda para consumir. Digo que sou libertário, mas não sei o que significa ser libertário. Eu valorizo intelectuais, já que sou um intelectual. Eu valorizo a instituição familiar já que tenho filhos e esposa. Tenho orgulho de mim, da minha vida, dos meus. Tenho orgulho, mesmo sendo tudo isso que estou expondo aqui. Tenho orgulho dos meus amigos ricos, que se deram bem na vida. Só gosto de gente como eu. Falo como poucos para marcar minha posição; uso palavras difíceis, que poucos entendem, para mostrar que sou alguém com um capital. Acredito no trabalho, trabalho remunerado. Odeio vagabundos. É, digo que sou inteligente, mas não consigo entender que a “valorização do trabalho” é uma palavra de ordem. A sociedade opressora é sustentada por isso. Não entendo o significado de “renda de existência”, já que valorizo apenas o trabalho assalariado. Não entendo que o cú, o cú dos gays, que ele colore o mundo, o deixa mais alegre, mais interessante; os gays e seus cús produzem mundos, o mundo. Cada prega que falta no cú de um gay, cada transa de um gay, cada fist fucking que um cú recebe, tudo isso deveria ser valorizado ao ponto de ser remunerado. [.........] Para mim, é normal duzentas mil pessoas em um festival de música pop patrocinado por um monopólio, é algo comum jogos contínuos de futebol que reúnem pelos menos 50 mil pessoas e é também comum um povo, e eu junto, em casa, nas redes sociais, enquanto pouquíssimas pessoas estão nas ruas contra o tal Estado fascista, que eu sou contra – melhor: 300 pessoas, Porto Alegre, um ano de golpe, Cidade Baixa, 8 horas e 30 da noite, sem polícia e bloqueios. [.....] Gosto de abstrações e de pesquisa teórica. Sou um intelectual. Quando a rua, a vida são meus objetos de pesquisa, abstraio de tal forma que a rua não aparece no meu trabalho. Odeio a rua, amo a torre de marfim. Chamo de empiria, conhecimento raso mostrar a vida de uma forma radicalmente direta, crua. Me escondo atrás de conceitos e não sei como eles funcionam, suas materializações na vida, nas ruas. [.........]
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Eu amo o mundo, minha vida, agradeço pela vida que me foi dada. O suicida, quem quer se matar, para mim, é um fraco, um coitado, alguém doente já que ele não é como eu, "eu, o bom cidadão, saudável, com bom senso". Quem quer se matar tem que ser impedido, precisa de ajuda médica, tem que ser hospitalizado. Quando alguém corta os pulsos, ou toma uma overdose, ou o que for, a primeira coisa que é feita é chamar os caras da área de saúde para salvá-lo. Ele pode ser internado contra a própria vontade e quase sempre é obrigado a ouvir o discurso moralista dos familiares; ele é obrigado a viver em um mundo que odeia, com pessoas que odeia, aceitar as coisas como elas são. E isso é assim, a vida, e eu afirmo essa vida. Se um drogado quer se matar – já que não pode mais se drogar, e a droga é a única coisa que permite que ele continue vivendo – eu digo: você tem que continuar vivendo como eu, como o bom cidadão, tem que viver a vida e sofrer como eu sofro. Uma dupla imposição: não pode se drogar, não pode se matar; o controle na forma de leis e moralismo. E mais..... aos filhos é perguntado: você quer nascer, ser meu filho, você quer fazer parte de tal povo, quer ser de tal classe social, ser de tal raça, você quer ser humano, viver em determinada época? Se perguntar antes é impossível... então, tudo isso é imposto, sem que haja escolha. Te fode, você vai ser humano e você não tem escolha.  
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Eu minto, manipulo, faço chantagens feito uma histérica para manter minha posição. Falo mal do senso comum, mas meu saber é baseado no senso comum. Penso como todos, a diferença é que sei falar e escrever. Como a maioria não sabe fazer isso, eu afirmo o senso comum dizendo: eles não pensam. Eu acho que conheço o mundo e tento mostrar para as pessoas o mundo, já que elas não pensam o mundo. Que todos se coloquem em seus lugares; meu lugar é o trono. Eu rio de todos, todos são risíveis. Digo para todos o tempo todo: esse ano eu li 50 livros, vi 30 filmes, viajei para a Europa... eu tenho que dizer, afirmar, mostrar. E todos os meus amigos fazem o mesmo, eles são iguais a mim; então, como há tantos iguais, nem me vejo como um elitista. [.......] Eu tenho que comer, como todos, uso as redes, como todos, tenho um corpo humano, como todos, mas, sim, sempre afirmo: eu sou alguém “diferenciado”. Sou tão controlado como todos, sou passivo como todos, aceito as coisas como todos, mas é isso: me acho importante. Não consigo nem imaginar uma vida não fascista, mas digo que eu luto por uma vida não fascista. Não reconheço que sou fascista, que eu quero manter as coisas como estão. Para mim, utopia é a sociedade perfeitamente controlada, na qual todas as pessoas sejam classe média e inteligentes como eu. [...........] Quando alguém diz: o corpo tem que ser conceituado; eu digo: não, o corpo humano é o corpo do homem moderno, formado por órgãos, é isso. Ou seja, afirmo o que todo mundo pensa; e sempre digo: essa é a forma que eu penso. Quando alguém diz: não tem muita diferença entre o capitalismo e o comunismo de Estado; eu digo: mas são regimes completamente diferentes, isso é o que eu penso. Quando alguém diz: só se pensa “com outros, ou seja, a partir do comum”; eu não entendo e digo: mas eu penso, isso é algo que diz respeito a uma pessoa, uma mente pensante. Ou seja, penso como todo mundo. Confundo sempre complexidade com extensão, quantidade. Para mim, complexidade é uma questão numérica. Ou seja, penso como todo mundo. [.....] Só falo palavras de ordem e repetições e repetições do senso comum. Falo o tempo todo em acabar com a opressão, mas para mim opressão é a de um Estado fascista. Só vejo o Estado. [..........] Como bem disseram Deleuze e Guattari e Negri e Hardt: a contracultura não foi uma revolução apenas de costumes, foi política, econômica, subjetiva. Mas eu gosto de cada coisa em seu lugar, penso assim, como todos, já que é a única forma de eu conseguir entender o mundo. Ser homossexual é uma questão cultural sim, mas também política, econômica, subjetiva, e diz respeito a todos. A inclusão das minorias cria uma vida diferente. Os gays, trans, travas, lésbicas, eles estão por aí, pelas ruas e não são mais agredidos; é outro mundo: a família mudou, a escola mudou, a empresa, as ruas, as cidades... tudo mudou a partir da inclusão: afetou a subjetividade das massas, alterou a política, o posicionamento dos políticos, as leis, alterou a economia, criou novos consumidores e produtores.
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Para mim, tudo é uma questão pessoal já que só vejo a mim mesmo e secundariamente as pessoas que estão na minha roda e as outras pessoas que estão ao redor; ou seja, como todos, só vejo o visível. Sim, tudo é uma questão pessoal, quando falam mal dos brancos, da classe média, dos intelectuais, sempre digo: mas eu não sou assim, você está errado. Acho que estão falando de mim e não do mundo. Sim, eu sou o centro do mundo, e tenho sempre que me afirmar. [...................] Sim, eu fecho os olhos para não compreender que sou um fraco, submisso. Eu me acho especial, eu ensino os fracos e submissos, os defendo; mas eu não aceito ser visto como eles. Então, quando dizem: direita e esquerda estão compactuando para se manterem, já que eu dependo, voto, acredito ou na direita ou na esquerda, eu digo: é mentira. Eu vou lutar eternamente para não aceitar que sou um fraco e submisso, que sou enganado e fodido desde sempre. Eu fecho os olhos para não enxergar isso.     

quarta-feira, 6 de setembro de 2017

sacações

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Quando sonho com helicópteros da polícia associo com o pai, o castrador, penso que o sonho significa que minha mulher vai saber de minhas escapadas, penso que o sonho se refere às minhas brincadeiras de infância naquela época em que a casa era meu mundo, um ambiente pequeno e hiper vigiado. O mundo é a família para mim já que todos os meus problemas, que chamo de psicológicos, pessoais, se resolvem a partir da análise da minha vida familiar, da minha infância. A criança fabula tanto já que só pode fugir da casa de papai e mamãe a partir da imaginação. O mesmo quando está na sala de aula, mas gostaria de estar em qualquer lugar menos lá e muito menos com papai e mamãe. O adolescente é aquele que mais sofre já que a outra vida está próxima, mas ainda é obrigado a morar com os pais, e então entra num jogo de forças com eles e sempre perde. Os pais chegam ao máximo de traumatizar os filhos para que eles continuem a ser um bom menino, uma boa menina; criam neuróticos, pessoas cheias de ódio reprimido exatamente como eles. Mas os helicópteros não são metáforas, não representam nada, são instrumentos concretos do controle, vigiam a todos. Não aceito isso... meus sonhos são colonizados pelo controle,  sou vigiado mesmo quando sonho. Não aceito isso já que é um enunciado paranoide para o meu bom senso. Enxergo e trato muito bem minhas neuroses, mas me nego a aceitar minha loucura, a bela loucura, a vidência, que não é obviamente a neurose. Me nego a perceber o insuportável, já que se percebesse e isso ficasse claro para os outros, eticamente, seria obrigado a ir para as ruas, lutar diretamente contra o poder de forma realmente eficaz, teria que estar junto da multidão – e a multidão não aceita os orgulhosos, esnobes, tranquilos em suas casas. A casa da multidão é a rua, a praça, a acampada, a okupa, o parque em festa. Festa, para mim, é coisa privada, eu e os meus, nos clubes cools, hipsters. Amo a segurança, os conceitos velhos e gastos me dão segurança, e que se fodam todos que não têm teto, guarda-chuvas, roupas impermeáveis.     
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Eu não entendo o mundo; o que está acontecendo com ele? Um grupo se reúne para fazer treinamento físico em um espaço público. Um grupo grande de pessoas com esse mesmo interesse; eles se reúnem uma vez por semana de noite no espaço. Os treinos envolvem alongamentos, aquecimentos, seções de corridas, pulos. Não são usados equipamentos, apenas os corpos. Tudo isso varia de semana para semana, a partir da exigência dos corpos, das pessoas ou das mudanças climáticas. Porém, o grupo necessita sempre de alguém que planeje uma aula, ou aulas; alguém que pense na necessidade dos corpos do grupo, mas o grupo não contrata um instrutor para não gastar dinheiro e por achar desnecessário. Por qual motivo desnecessário? Todo o treinamento envolve exercícios comuns, que certos membros já têm conhecimento, mesmo não sendo profissionais. A primeira aula do coletivo é então capitaneada por alguém com esse conhecimento, um jogador de futebol não profissional, alguém que fez academia por um bom tempo. Depois das primeiras aulas, os membros já têm um conhecimento consistente e podem se propor a planejar uma aula. Depois de uns meses qualquer um que se interessou pelo treinamento, o fez durante um tempo, pode planejar uma aula, qualquer um que esteja a fim. Esse alguém que planeja nesse coletivo nunca é um líder, um professor, alguém que centraliza o coletivo; é só alguém com tempo e disposição. E muitos do coletivo se negam a isso, a ser o planejador do dia, da semana ou do mês. Ou seja, não há liderança, e se o planejador se vê ou é visto como líder isso é derivado de uma ilusão, já que no caso, planejar, é indesejado por muitos. Isso é um exemplo, uma atualização, uma experimentação do anarquismo. Ele é experimentado, sempre foi, desde muito. Eu não entendo isso, por qual razão eles fazem isso; não me interessam as dinâmicas dentro da sociedade que tentam burlar as hierarquias; a auto-organização de coletivos, para mim, são como festas, fugas do dia de trabalho, da vida dura que tanto amo, do tempo controlado, da vida controlada. Para mim, eles estão brincando. O que importa, para mim, é o Estado sempre. Só penso em coisas grandes, sou um pensador das coisas grandes, sim, sempre afirmo isso. Não vou perder tempo com essa gente. Isso que eu penso quando vejo que as pessoas das okupas se preocupam com relações diferentes com o corpo, com o lúdico, com o tempo, com a alimentação. Odeio eles já que só querem uma vida suportável. Odeio quem acha minha vida insuportável. Eles só querem festa, e eu quero eles controlados para não abalarem a segurança da minha vida. Odeio quem vive de forma diferente, melhor, odeio quem vive, já que os que tomam o espaço público sabem viver e eu estou morto desde sempre.
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A infância, para mim, é a melhor fase da vida; mas as crianças são fascistas a partir do momento que se apropriam dos signos adultos, ou são apropriadas por eles. Antes disso, são consideradas primitivos. A criança aprende a odiar o controle dos pais, da cidade, do que for. O ódio cresce e vira monstruoso, mas todos dizem: você é feliz, tem que ser feliz, você é criança. Daí se derem para a criança uma arma, ela mata um judeu – os nazistas faziam isso. Faça o teste: dê uma pedra para uma criança e diga que ela pode jogar em alguém pertencente a uma minoria; ela vai jogar com prazer. As crianças odeiam, são neuróticas, e expressam isso muito bem; mas o senso comum diz que elas estão brincando, se divertindo
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Eu tava na sétima série numa cidade do interior. Meus colegas eram uns chatos, e os caras mais velhos não deixavam eu andar muito com eles, já que era mais novo. Daí aparece um novo aluno, que tinha vindo de Porto Alegre. A gente começa a andar juntos e se conhece bem. Ele era muito inteligente e ligado, parecido comigo. Ele tinha um irmão mais velho que curtia cultura pop, como eu. Nós dois, a gente já lia as boas revistas nacionais de rock, como a Bizz, lia os quadrinhos do Chiclete com Bananas; mas eu era um pouco mais infantil, já que ele tinha vindo da capital. Um dia, em aula, a professora de matemática tava meio puta já que a gente não parava de falar, de se socar, de rir alto. Ela vem até a gente no fundo da sala e olha as nossas classes; a gente tinha escrito “Coléra” nos tampos da mesa, a banda punk que tava ouvindo direto. Foi legal, ela olhou e falou meio maravilhada: Coléra? A gente matava aula e ia pra minha casa de manhã; não tinha ninguém, então não dava nada. A gente ficava curtindo o quarto do meu irmão, sua coleção de trezentos discos. Quando não dava pra ir pra casa, pros velhos não saberem que a gente tava matando aula, a gente curtia o centro da cidade. Um dia de manhã, a gente tava numa loja de discos vendo as capas e acha um do Pil. A gente diz: bahh, Pil, que massa! A gente não tinha ouvido ainda, mas já tinha lido algo sobre, e pediu pra ouvir. É difícil descrever essa sensação que me pegou durante toda a adolescência: descobrir uma nova banda, um novo estilo. E curtir rock não é só ouvir um som, mas ler sobre, ver filmes sobre, ir em shows, andar com certas pessoas, ter uma fascinação pela estética das bandas, se vestir como eles. Se eu levei bomba na sétima série já que não suportava ficar em sala de aula.... bem, na mesma época, nessa época que comecei a andar com o mano, eu li toda a coleção da Bizz do meu irmão, conheci inúmeras bandas, vi inúmeros filmes. Na Bizz tinha uma seção que era sobre a história, a biografia de bandas; era uma seção longa, com muito texto; de início, fiquei meio amedrontado com tanta informação, mas fui lendo aos poucos. Depois de um tempo, as edições que eu gostava, as reportagens que mais gostava – como a revista era mensal – eu lia inúmeras vezes durante o mês. Li a história dos Doors, Joy Division, Pink Floyd, Pistols, histórias regadas de drogas, sexo, suicídio, loucura; e a partir daí comecei a ficar mais que interessado nesse tipo de vida. Nesse tempo, achei numa locadora o filme sobre o Sid Vicious, Sid e Nancy. Assisti e achei ruim, achei poser, espetacularizado; claro que não defini o filme dessa forma com 12 anos, mas achei que muitas cenas eram forçadas, tipo: nos shows, no filme, Sid mal ficava no palco, não tocava o baixo, ficava brigando com a plateia. Quando vi isso pensei: não é assim um show, o cara que fez o filme não sabe nada de shows de rock. Demorei uns anos pra conseguir entender que era realmente assim um show com Sid no baixo. Outra cena que achei forçada: a primeira vez que Sid toma heroína é tipo um inferno, com todo mundo mal, vomitando. Pensei com minha sabedoria de 12 anos: nenhuma droga deixa alguém assim tão mal, que merda de filme; e depois de uns anos, entendi que a cena era bem realista. Os anos passaram e fui acumulando repetições de séries, mas, ao mesmo tempo, meu quarto começou a ficar pequeno com a quantidade de revistas que comprava. Além disso, depois de ter lido a biografia de todas a bandas da história do rock publicadas pela Bizz e em outras revistas, foi um passo pra virar um aficionado em literatura romântica, marginal. Tava fazendo supletivo com 15 anos, a gente matava aula direto, pra fumar maconha. Eu fumava e ficava na praça com o pessoal, ou fumava e ia pro fliper, ou fumava e descia até a esquina que tinha o melhor sebo de livros da cidade. Nessa época, li todos os livros do Bukowski e da geração Beat que encontrei; li toda a coleção Rebeldes e Malditos lançada por uma editora gaúcha. Mas o que importa disso tudo, obviamente, não é a história de um menino que lia e virou escritor... isso é um exemplo de uma linha de fuga precoce, típica daqueles que odeiam sala de aula, matéria escolar, mas tem um grande interesse pelo campo do saber, da arte, da cultura. O pessoal que tava em sala de aula tirando notas boas, na sétima, oitava série teriam maturidade pra ler, se interessar pela tradição romântica? Teriam maturidade pra criar uma vida centrada na luta contra a estrutura disciplinar, as hierarquias, os pais, os professores, os policiais, as leis, as regras, o controle? Durante minha vida, sempre tive contato com caras extremamente inteligentes, com posições políticas, existenciais louváveis, que não conseguiram nem terminar o primeiro grau. Os punks do centro de Porto Alegre nos 90 eram uns deles. Pobres, morando na rua, com vinte e poucos anos, apresentando erros enormes de norma culta na fala, mas que podiam conversar sobre comunismo e anarquismo. Também conheci muitos hippies, jovens, que vendiam artesanato, pobres, sem primeiro grau, que tinham um conhecimento enorme sobre culturas alternativas. E eles – os punks, os hippies, os jovens – podem não ter condições pra produzir obra, então produzem formas de vidas libertárias. Essa é a prática anarquista. Anarquismo não é só teoria, é prática como questão existencial, e essa prática talvez seja mais importante do que a produção consistente no campo do saber. O anarquismo que não se pratica, não é anarquismo; o anarquismo não aceita a dicotomia: vida e obra. Pra conhecer o anarquismo é mais importante estar com as pessoas, os coletivos do que ler. 

sábado, 2 de setembro de 2017

duas crônicas


Eu não aceito que me vejam como um fraco, um pobre, um gay, uma mulher, um perdedor, vou lutar para que me vejam como alguém bem-sucedido. Sou um pudico, um boca limpa, só uso belas palavras. Todos cagam, mijam, espirram, vomitam, transam, suam... corrimento sai da vagina, porra do pau, onda vermelha. Idiotas inspecionam as fezes. Sangue do nariz cheirado. O banheiro fede a merda, a mijo. A toalha usada tem o cheiro meu e dela. Mas escondo isso já que tenho vergonha do corpo, do meu corpo, do dela, de todos. Eu nunca menciono isso, não há merda em meu trabalho intelectual, já que intelectuais não tem cú. [......] Ela gosta do doce do pênis, ele gosta do doce do cú, eles e elas gostam do salgado da vagina. Ele beija ela depois de a chupar e nunca limpa a boca. Ela chupa o pau dele e ele beija ela. Ela chupa o pau do amante e depois beija ele, e ele faz algo parecido. Ele chupa a vagina do seu amor menstruada. Nós cultuamos urina, merda e sangue. Fumantes queimam a pele, e pele queimada tem o seu cheiro. Depois do corte rola a cicatrização, purulenta; e o pus é tão doce. Quando criança ele cagava, colocava os dedos nas fezes e pintava as paredes; virou um grande artista. Quem fuma conhece e muito bem o catarro, quem tem asma também. O catarro às vezes mais perolado como porra, às vezes mais amarelado, purulento, às vezes com sangue. Ele gosta de lamber a pele dela de noite, mesmo que ela só tenha tomado banho de manhã; gosta do gosto da axila meio depilada e daquele cheiro forte de gente no verão. Tava todo mundo no fumódromo, ou na fila do banheiro se beijando, se agarrando – sem penetração já que no caso era algo secundário – muitos já tinham vomitado, todos estavam com a boca seca dos crivos e da biras, muitos tinham herpes e hpv e nem sabiam; mas e daí? Anjos não são assexuados, anjos trepam em qualquer lugar, chupam o que aparecer na frente, só não chupam os próprios dedos. Beijar uma boca que acabou de vomitar é amor. [...] E tudo isso é feito por gente que sabe muito bem o quanto o corpo é podre e, por isso, delicioso. Essa gente não tem nojo de si, do seu corpo. Mas se essas relações com o corpo forem expressas na mesa de jantar, ou em sala de aula, ou na reunião da empresa, se forem faladas para a esposa, ou para as amigas delas, ou ao pai e a mãe, para as pessoas sérias de forma aberta, melhor, radicalmente aberta... quem fizer isso vai ser visto de qual forma? A assepsia da ciência; a ciência como um espaço para pessoas sérias falarem sobre coisas sérias; e o corpo que pulsa o tempo todo, caga e mija, sempre... isso deve ficar de lado.  [...] Burroughs é o corpo na literatura, principalmente as moléculas do corpo. Kerouac era um corpo em movimento na estrada, mesmo que em Big Sur as moléculas fossem expostas a partir do delirium tremens. [....] O louco queria que os banheiros de apartamentos tivessem uma sacada, grande. Daí ele acordaria de manhã e daria uma boa cagada curtindo a vista, as ruas, as pessoas, a cidade. Uma relação anal com a cidade. [....] “Coprolalia” é um termo interessante, se refere às expressões obscenas, mas que são usadas em poucos espaços, nas ruas, em ambientes de ócio. Quem tem Tourette sabe bem o que fala e faz: cospe, pula, xinga não está nem aí e que se foda. Ele fala a verdade, reconhece uma puta que esconde que é puta, ele a vê e diz, berra: sua puta! Quando tem alguém escroto, ele cospe nele, e sabe o que faz. Ele assusta já que mostra a verdade que ninguém quer ver. Sabedoria de quem tem Tourette, sabedoria dos loucos. [....] Os punks não são menininhas, curtem o corpo: o vocal do The Clash pegou hepatite já que cuspiram dentro da boca dele em um show; a famosa cusparada no show punk. Sid Vicious pegava água de latrina para se picar. Lou Reed queria que cagassem na cara dele. A banda xinga a plateia e a plateia xinga a banda, todos no show se cospem, se batem: o punk tem Tourette. Os Titãs sempre foram meio punks, eles não tinham medo de falar a verdade: “amor, eu quero te ver cagar”. [....] A sabedoria das pregas do cú. Quem dá o cú não fala sobre o cú ou dar o cú. O cara dá o cú, mas escreve sobre florzinhas e amor. Não fala, exatamente, do que conhece já que sabe que vai ser bloqueado nas redes sociais, não vai conseguir emprego em um jornal, vai se queimar em sala de aula... e se falar sobre dar o cú em uma revista acadêmica, vai ter que modular o tom, de tal forma, que o texto não tenha mais o cheiro doce de cú.
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O louco é tão louco que tem cinco sentidos, mais o sexto. Só que o sexto não é um sentido a mais, mas a relação entre todos os sentidos. [....] Ele sente um orgasmo especial quando transa, orgasmo no peito, no coração, no pulmão; sim, o coração quase explode junto do orgasmo genital, ou antes dele; antes ou junto, tanto faz, tão bom quanto. [....] O morto está morto, como disse Gullar, mas o louco está vivo, e o louco está louco. O louco não come uma vagina, ele é comido por ela. O louco vê ela sorrindo, mas sabe que ela está triste. O louco sabe que “um doze” pode ser “um vinte um”, e vinte às vezes está bom, é uma boa mesa no jogo de poker. [...........] A transa de um casal diz respeito aos dois, mas não apenas, diz respeito a muita coisa, muitas pessoas. Duas legiões que se encontram, não para entrar numa batalha, mas para produzirem algo em comum. Ás vezes funciona, às vezes não, e quando funciona... são as singularidades das duas legiões agindo em comum: um sentindo o outro na performance que não é teatro; sem nóias, chatices e frescuras. [....] Quando eles acordam – aquele casal que vira a noite – e tem umas seis camisinhas usadas no chão, bem usadas, eles dizem, sem vaidades, um pouco surpresos: a noite foi boa com a gente.... e, vamos transar antes do almoço? [....] O hipster entende as hipsters. Os casais hipsters são a união de dois indiferenciados. O hipster faz bem o papel de mulherzinha, de amigo, de carinhoso, ele sabe chupar como uma mulher. O hipster, para ser um, teve que se tornar isso: a melhor amiga da sua mulher na cama. O nerd, se ainda existem nerds – já que os hipsters são a evolução dos nerds –, o nerd é o gatinho na cama, reprimido, guiado pela mulher. Já o grosso, o rude, se sente mal na cama, sente vergonha e goza rápido, já que estar junto de alguém de uma forma íntima é quase impossível para ele. [....]