quarta-feira, 6 de setembro de 2017

sacações

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Quando sonho com helicópteros da polícia associo com o pai, o castrador, penso que o sonho significa que minha mulher vai saber de minhas escapadas, penso que o sonho se refere às minhas brincadeiras de infância naquela época em que a casa era meu mundo, um ambiente pequeno e hiper vigiado. O mundo é a família para mim já que todos os meus problemas, que chamo de psicológicos, pessoais, se resolvem a partir da análise da minha vida familiar, da minha infância. A criança fabula tanto já que só pode fugir da casa de papai e mamãe a partir da imaginação. O mesmo quando está na sala de aula, mas gostaria de estar em qualquer lugar menos lá e muito menos com papai e mamãe. O adolescente é aquele que mais sofre já que a outra vida está próxima, mas ainda é obrigado a morar com os pais, e então entra num jogo de forças com eles e sempre perde. Os pais chegam ao máximo de traumatizar os filhos para que eles continuem a ser um bom menino, uma boa menina; criam neuróticos, pessoas cheias de ódio reprimido exatamente como eles. Mas os helicópteros não são metáforas, não representam nada, são instrumentos concretos do controle, vigiam a todos. Não aceito isso... meus sonhos são colonizados pelo controle,  sou vigiado mesmo quando sonho. Não aceito isso já que é um enunciado paranoide para o meu bom senso. Enxergo e trato muito bem minhas neuroses, mas me nego a aceitar minha loucura, a bela loucura, a vidência, que não é obviamente a neurose. Me nego a perceber o insuportável, já que se percebesse e isso ficasse claro para os outros, eticamente, seria obrigado a ir para as ruas, lutar diretamente contra o poder de forma realmente eficaz, teria que estar junto da multidão – e a multidão não aceita os orgulhosos, esnobes, tranquilos em suas casas. A casa da multidão é a rua, a praça, a acampada, a okupa, o parque em festa. Festa, para mim, é coisa privada, eu e os meus, nos clubes cools, hipsters. Amo a segurança, os conceitos velhos e gastos me dão segurança, e que se fodam todos que não têm teto, guarda-chuvas, roupas impermeáveis.     
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Eu não entendo o mundo; o que está acontecendo com ele? Um grupo se reúne para fazer treinamento físico em um espaço público. Um grupo grande de pessoas com esse mesmo interesse; eles se reúnem uma vez por semana de noite no espaço. Os treinos envolvem alongamentos, aquecimentos, seções de corridas, pulos. Não são usados equipamentos, apenas os corpos. Tudo isso varia de semana para semana, a partir da exigência dos corpos, das pessoas ou das mudanças climáticas. Porém, o grupo necessita sempre de alguém que planeje uma aula, ou aulas; alguém que pense na necessidade dos corpos do grupo, mas o grupo não contrata um instrutor para não gastar dinheiro e por achar desnecessário. Por qual motivo desnecessário? Todo o treinamento envolve exercícios comuns, que certos membros já têm conhecimento, mesmo não sendo profissionais. A primeira aula do coletivo é então capitaneada por alguém com esse conhecimento, um jogador de futebol não profissional, alguém que fez academia por um bom tempo. Depois das primeiras aulas, os membros já têm um conhecimento consistente e podem se propor a planejar uma aula. Depois de uns meses qualquer um que se interessou pelo treinamento, o fez durante um tempo, pode planejar uma aula, qualquer um que esteja a fim. Esse alguém que planeja nesse coletivo nunca é um líder, um professor, alguém que centraliza o coletivo; é só alguém com tempo e disposição. E muitos do coletivo se negam a isso, a ser o planejador do dia, da semana ou do mês. Ou seja, não há liderança, e se o planejador se vê ou é visto como líder isso é derivado de uma ilusão, já que no caso, planejar, é indesejado por muitos. Isso é um exemplo, uma atualização, uma experimentação do anarquismo. Ele é experimentado, sempre foi, desde muito. Eu não entendo isso, por qual razão eles fazem isso; não me interessam as dinâmicas dentro da sociedade que tentam burlar as hierarquias; a auto-organização de coletivos, para mim, são como festas, fugas do dia de trabalho, da vida dura que tanto amo, do tempo controlado, da vida controlada. Para mim, eles estão brincando. O que importa, para mim, é o Estado sempre. Só penso em coisas grandes, sou um pensador das coisas grandes, sim, sempre afirmo isso. Não vou perder tempo com essa gente. Isso que eu penso quando vejo que as pessoas das okupas se preocupam com relações diferentes com o corpo, com o lúdico, com o tempo, com a alimentação. Odeio eles já que só querem uma vida suportável. Odeio quem acha minha vida insuportável. Eles só querem festa, e eu quero eles controlados para não abalarem a segurança da minha vida. Odeio quem vive de forma diferente, melhor, odeio quem vive, já que os que tomam o espaço público sabem viver e eu estou morto desde sempre.
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A infância, para mim, é a melhor fase da vida; mas as crianças são fascistas a partir do momento que se apropriam dos signos adultos, ou são apropriadas por eles. Antes disso, são consideradas primitivos. A criança aprende a odiar o controle dos pais, da cidade, do que for. O ódio cresce e vira monstruoso, mas todos dizem: você é feliz, tem que ser feliz, você é criança. Daí se derem para a criança uma arma, ela mata um judeu – os nazistas faziam isso. Faça o teste: dê uma pedra para uma criança e diga que ela pode jogar em alguém pertencente a uma minoria; ela vai jogar com prazer. As crianças odeiam, são neuróticas, e expressam isso muito bem; mas o senso comum diz que elas estão brincando, se divertindo
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Eu tava na sétima série numa cidade do interior. Meus colegas eram uns chatos, e os caras mais velhos não deixavam eu andar muito com eles, já que era mais novo. Daí aparece um novo aluno, que tinha vindo de Porto Alegre. A gente começa a andar juntos e se conhece bem. Ele era muito inteligente e ligado, parecido comigo. Ele tinha um irmão mais velho que curtia cultura pop, como eu. Nós dois, a gente já lia as boas revistas nacionais de rock, como a Bizz, lia os quadrinhos do Chiclete com Bananas; mas eu era um pouco mais infantil, já que ele tinha vindo da capital. Um dia, em aula, a professora de matemática tava meio puta já que a gente não parava de falar, de se socar, de rir alto. Ela vem até a gente no fundo da sala e olha as nossas classes; a gente tinha escrito “Coléra” nos tampos da mesa, a banda punk que tava ouvindo direto. Foi legal, ela olhou e falou meio maravilhada: Coléra? A gente matava aula e ia pra minha casa de manhã; não tinha ninguém, então não dava nada. A gente ficava curtindo o quarto do meu irmão, sua coleção de trezentos discos. Quando não dava pra ir pra casa, pros velhos não saberem que a gente tava matando aula, a gente curtia o centro da cidade. Um dia de manhã, a gente tava numa loja de discos vendo as capas e acha um do Pil. A gente diz: bahh, Pil, que massa! A gente não tinha ouvido ainda, mas já tinha lido algo sobre, e pediu pra ouvir. É difícil descrever essa sensação que me pegou durante toda a adolescência: descobrir uma nova banda, um novo estilo. E curtir rock não é só ouvir um som, mas ler sobre, ver filmes sobre, ir em shows, andar com certas pessoas, ter uma fascinação pela estética das bandas, se vestir como eles. Se eu levei bomba na sétima série já que não suportava ficar em sala de aula.... bem, na mesma época, nessa época que comecei a andar com o mano, eu li toda a coleção da Bizz do meu irmão, conheci inúmeras bandas, vi inúmeros filmes. Na Bizz tinha uma seção que era sobre a história, a biografia de bandas; era uma seção longa, com muito texto; de início, fiquei meio amedrontado com tanta informação, mas fui lendo aos poucos. Depois de um tempo, as edições que eu gostava, as reportagens que mais gostava – como a revista era mensal – eu lia inúmeras vezes durante o mês. Li a história dos Doors, Joy Division, Pink Floyd, Pistols, histórias regadas de drogas, sexo, suicídio, loucura; e a partir daí comecei a ficar mais que interessado nesse tipo de vida. Nesse tempo, achei numa locadora o filme sobre o Sid Vicious, Sid e Nancy. Assisti e achei ruim, achei poser, espetacularizado; claro que não defini o filme dessa forma com 12 anos, mas achei que muitas cenas eram forçadas, tipo: nos shows, no filme, Sid mal ficava no palco, não tocava o baixo, ficava brigando com a plateia. Quando vi isso pensei: não é assim um show, o cara que fez o filme não sabe nada de shows de rock. Demorei uns anos pra conseguir entender que era realmente assim um show com Sid no baixo. Outra cena que achei forçada: a primeira vez que Sid toma heroína é tipo um inferno, com todo mundo mal, vomitando. Pensei com minha sabedoria de 12 anos: nenhuma droga deixa alguém assim tão mal, que merda de filme; e depois de uns anos, entendi que a cena era bem realista. Os anos passaram e fui acumulando repetições de séries, mas, ao mesmo tempo, meu quarto começou a ficar pequeno com a quantidade de revistas que comprava. Além disso, depois de ter lido a biografia de todas a bandas da história do rock publicadas pela Bizz e em outras revistas, foi um passo pra virar um aficionado em literatura romântica, marginal. Tava fazendo supletivo com 15 anos, a gente matava aula direto, pra fumar maconha. Eu fumava e ficava na praça com o pessoal, ou fumava e ia pro fliper, ou fumava e descia até a esquina que tinha o melhor sebo de livros da cidade. Nessa época, li todos os livros do Bukowski e da geração Beat que encontrei; li toda a coleção Rebeldes e Malditos lançada por uma editora gaúcha. Mas o que importa disso tudo, obviamente, não é a história de um menino que lia e virou escritor... isso é um exemplo de uma linha de fuga precoce, típica daqueles que odeiam sala de aula, matéria escolar, mas tem um grande interesse pelo campo do saber, da arte, da cultura. O pessoal que tava em sala de aula tirando notas boas, na sétima, oitava série teriam maturidade pra ler, se interessar pela tradição romântica? Teriam maturidade pra criar uma vida centrada na luta contra a estrutura disciplinar, as hierarquias, os pais, os professores, os policiais, as leis, as regras, o controle? Durante minha vida, sempre tive contato com caras extremamente inteligentes, com posições políticas, existenciais louváveis, que não conseguiram nem terminar o primeiro grau. Os punks do centro de Porto Alegre nos 90 eram uns deles. Pobres, morando na rua, com vinte e poucos anos, apresentando erros enormes de norma culta na fala, mas que podiam conversar sobre comunismo e anarquismo. Também conheci muitos hippies, jovens, que vendiam artesanato, pobres, sem primeiro grau, que tinham um conhecimento enorme sobre culturas alternativas. E eles – os punks, os hippies, os jovens – podem não ter condições pra produzir obra, então produzem formas de vidas libertárias. Essa é a prática anarquista. Anarquismo não é só teoria, é prática como questão existencial, e essa prática talvez seja mais importante do que a produção consistente no campo do saber. O anarquismo que não se pratica, não é anarquismo; o anarquismo não aceita a dicotomia: vida e obra. Pra conhecer o anarquismo é mais importante estar com as pessoas, os coletivos do que ler. 

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